segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Délicatesse





Aturdido, eu sei que vi o garoto descendo pela janela do próprio quarto, não suportando mais nada do que existia dentro do quarto, dentro da casa, dentro do pardieiro n’onde vivia com o pai e com a mãe. Isso eu pensei quando passava de bonde perto daquele lugar. Mas que rapidamente saltei no próximo ponto, próxima estrada, esquina com a mansão vermelha que contrastava inteira com as casas daquele bairro, daquele barrio de marginais, daquele lugar. Eu, que sempre fui dominado pela vontade de vagar, vagabundo, buscava vagabundos, amava os vagabundos, os moribundos, também como amava os bêbados e os certinhos, os fugitivos de casa, não me trespassariam os olhos sem curiosa visão de poesia, sem vontade de saber, de ganhar. Voltei duas estradas atrás e ainda tive tempo de topar de frente com a cara lavada de sangue do rapaz. Era sangue mesmo, não era tinta vermelha de festim ou fantasia. Ele tentou me desviar, mas indolente eu, muito mais do que ele, não deixei que ele atravessasse o meu caminho, tomando cuidado para que não pisoteasse as minhas botas lustradas, agora filigranadas por leve manta de poeira de estradas. Ele bufou feito um touro pequenino, um animal acuado é mais feroz quando tem seu passo impedido, e eu o impedi, até que ele estourasse. Estourou numa palavra suja e eu ri. Não dei gargalhada que o constrangesse, apenas sorri para que ele sentisse, sem ter a pretensão ensaiada de para que ele, o meu melhor sorriso, nascido eu confesso, de uma compaixão e misturada toda, num boníssimo e incômodo reconhecimento de mim. E naquela hora eu o desejei.


__Está rindo da minha cara?_resfolega ainda possesso cuspindo a saliva de sua boca nervosa.__Se não vai fazer nada, então saia da minha frente, imbecil!
__Imbecil é você, que não percebe que estou te sorrindo!__Era de toda esta compostura de bilionésimos segundos que meu composto era todo feito.
__Está me sorrindo porque então? Guarde teus dentes de puro branco e caucásio_ele sábia falar!_ para se arreganhar a outro puto, porque eu não estou para brincadeiras!
__Reparou nos meus dentes é? Gostou da arcada do meu sorriso, então?
__Gosto de quebrá-los também se for preciso!
__Tente! Faça o mesmo que você acabou de fazer em casa, depois fuja para que eu não chame a polícia, mas ah! Melhor, não fuja novamente, não corra novamente, porque eu não chamo polícia, eu odeio polícia! Eu mesmo quebro a tua cara até você chorar ou pedir mais!

Bastou de pouco para que eu pudesse entender que os olhos dele se enchiam. Era de um mar francês que eu lembrava, dos mares da costa, meio cinzas, eram muito longe azuis, mas diafanamente cinzentos, o menino era de rara beleza maltratada.
Recuei meu passo, estratégico, nunca senhor absoluto de mim e ele me chamou para que voltasse.


__Me desculpe!
__Não me peça, quem disse que você precisa de perdão? Eu disse alguma coisa? Só não te deixei passar dragando teu caminho e te sorri, porque te achei bonito o estado, o sorriso.
__Mas eu não sorri, eu nem mostrei um dente da boca, o senhor me viu machucado.
__Mas sorriu liberdade quando pulou da janela e resfolegava os planos de para onde iria agora, depois que mandou os pais irem tomar no cú.

O peito dele suspirou tão alto feito o mesmo mar francês.

__Então, por favor, me leve para tomar alguma coisa, que o dinheiro que eu tenho é pouco e eu não sei para onde, ainda, posso ir.


Dolente e levemente arqueado eu via na tontura das palavras dele, um pedido de prazer, que viesse depois do socorro. E para quem quer me julgar, julgue, não sou de devorar desesperados. Devolvida a consciência do que sofre, o pedido quase sempre, parte deles, em si mesmos. E não, eu não sou irresistível, irresistível é a vida quando se apresenta nua, sem modelos ou condenações.


__Levo para onde quiser, mas antes limpe o sangue dessa ferida que desce da tua sobrancelha. Não sou assistente social, não sou acolhedor de menores....
__Eu não sou menor!
__Eu sei, deixa eu terminar? ... E só estou aqui parado diante de você, porque me chamou atenção! Mas também não estou aqui dizendo que você é igual a mim.
__Eu sou igual a você! Qual a diferença, porque estou sujo e espancado? Porque você tem dinheiro para me pagar um conhaque, para comer tuas putas e...
__Putos. Eu gosto do que me comover!
__Eu te comovo?


Não respondi e joguei como uma faca circense sobre o peito dele o meu lenço de algodão, enquanto ele o tomava com a destreza atenta dos que estão presentes e vívidos no aqui.

Resolvi que não era melhor estar passeando com ele naquele arredor, que era por cuidado maior, parar um carro e pedir que nos conduzisse a um lugar. Escolhi um hotel, porque ele precisava de um banho, de comida, ele precisava falar e quem sabe gritar, urrar seus gritos em lugar de descrição.
Paguei o hotel mais caro, pedi para que trouxessem roupas limpas e o deixei ir ao banho, sem ter vontade nenhuma de vê-lo despido, de admirar as supostas belezas do seu corpo, o interesse nem sempre nasce desses facilitadores em mim. Ele demorou no banho, fez o vapor invadir o quarto porque, não sendo mocinho de casa “ensaiada”, fez questão de deixar a porta aberta, caso eu quisesse entrar e começar algo que só começaria, se eu enxergasse autonomia depois de toda aquela minha vantajada e suspeitosa delicadeza.

Quem me saía do banho era outro rapaz, do que eu já havia visto dentro do mesmo rapaz, mais calmo, embora o cenho fechado ainda deflagrasse as torturas de que ainda era vitima dentro de si, dentro dos recônditos quartos sempre resguardados de sua doçura. Sim! Porque havia doçura nos traços de sua beleza, uma forte cara de quase homem, agora vestido nos pijamas do hotel, um ferimento que não parecia grande coisa n’altura do que lhe compunha a paisagem dos olhos e uma fragrância de macho, recém saída da adolescência, atravessado pelas flores do sabonete floral do quarto de banhos, nem tão bem decorado assim.


__Você quer comer alguma coisa?
__O que o senhor quiser que eu coma, eu como!


Nem respondi! Silenciei simulando desentendimento para a sua falta de cuidado, na tentativa de se mostrar solícito, embora como resultado, vulgaridade e desserviço.

__Desculpe.
__Por quê?
__Eu estou me adiantando diante dos teus gostos.
__Está sim, mas meu gosto não é nunca foi parado. Você vive disso?
__De quê?
__De oferecer teu corpo em troca de cuidados na hora do desespero?
__Não senhor.
__Não me chame de senhor! Não há necessidade, já disse que não sou assistente soci.....
__Eu já sei, eu já sei, perdão!... Antes de comer alguma coisa eu posso tomar um conhaque? Minha ferida está doendo_ se aproximou bem rente a mim_ e dizem que o álcool anestesia as dores dos ferimentos.
__Não se preocupe, eu vou deixar um dinheiro para que você passe numa farmácia e compre algumas coisas para tratar disso aí!


Durante alguns segundos, isso me bastava, eu tive a nítida sensação de saber que eu era capaz de amar àquele rapaz e eu não evitaria, porque dada a minha natureza nada platônica, também contornos de afeto nas silhuetas dele. Chamei pelo telefone o serviço de quarto e pedi para que eles me trouxessem uma garrafa de bom conhaque e algo para comer, que não consigo lembrar agora, porque eu não disse, mas isto me aconteceu já faz muito tempo, e no dia de hoje eu precisava dizer. Contar apenas.

Seu nome, não revelarei, porque não o repito nem para mim, desde o momento em que decidi que meu corpo seria relicário para o corpo dele e o dele também seria para o meu.
Conversamos durante horas, enquanto ele bebia, sorvendo da garrafa, sem nenhuma tontura maior que o depusesse desenfreio pelo alto grau etílico.
No quarto, algo de uma alegria maior se instalara nos papéis de paredes, com borboletas e gravuras de ramos que me lembravam eras. No fundo de tanto estômago e dor e marginalidades divididas, quem teve fome fui eu e sendo o primeiro a comer com as mãos, feito um andrajo comum, sem os sapatos, apenas com as roupas de baixo, porque não havia pudor no poder das minhas palavras, soltas em bandos como pássaros sempre arrulhantes e piolhentos, eu que jamais me detinha, estava livre e igual ali. Me contou toda a sua estória, era de família quase rica, tinha quase os mesmos gostos que eu, os mesmos rostos que eu, semelhando doçura e bravura e loucura nas galopadas estórias de como conhecera o mundo e de porquê, naquela tarde, resolvera se lançar depois de ter sido agredido pelo pai, pela janela de sua própria casa. E perguntei, por que, não me contive:

__E por que não pela porta da frente, se você diz que foi expulso e não te impediriam?
__Porque a janela, na estória de todas as casas, mesmo mostrando belezas quando olhamos por ela, para mim sempre representou a chance da saída e porque para mim ela, marginal.

Achei tão lindo, tão intenso e sincero que sozinhos, juntos, sem nenhum comando maior que a nossa própria vontade e nossos paus que já estavam duros, rijos, latejantes, encantados pela presença plena um do outro, nos beijamos. E de como fora o sexo, não sei nem dizer, porque os meus buracos eram as entradas da casa dele e os dele eram os precipícios para desejos meus.
E me lançando de esquecimentos maiores que me depusessem qualquer fraqueza ou necessidade de jogo, ali, naquele dia inteiro, eu amei a uma pessoa que conheci para todo o sempre e que me conhecera para assim também. Gozamos e bebemos das águas mais jaculosas e profundas, comemos e mordemos das carnes mais sãs e moribundas, numa antropofagia moderna de pessoas antigas, ermas, irmãs, iguais, ancestralizadas pelo bravio córrego de um Deus fedorento e por isso mais belo e resfolegante, subversivo, submundo, feito de todo uma abertura sem dor, que poucos conhecem, para tempos depois por medo do abismo ou consciência do abismo, quem sabe, guardar! Temos medo de Deus? Temos medo da liberdade que ele representa e o inventamos qual um mito profícuo e nada jucundo, nada alegre, nada livre, para justificar nossos medos mais ínfimos de toda soltura.

O convenci para que voltasse para casa, que entrasse pela porta da frente, mesmo amando as janelas, por onde sempre, ele poderia sair para me encontrar, e o fez durante anos, durante toda a vida! E ainda, que decidisse lá, sozinho, o que era melhor fazer da sua estória, dos seus mistérios, das suas margens, das suas decisões. Quem sabe ali não decidimos? Exatamente por nos termos vistos, tão nus e quem sabe espelhados, n’alguma aturdida diferença. E mesmo estando geográfica e completamente distintas nossas futuras horas e direções, sempre fazíamos uma ponte para nos encontrar. Ele, fugindo pela janela, da sua nova casa, das suas muitas casas e eu, sempre querendo saltar de um bonde, numa quem sabe tarde alarida, para o encontrar. Refazendo a mesma sensação, sempre primeira do dia em que sangrando eu vi nos olhos de um moleque, o amor que jamais se abateria. E jamais se abateu.


O pornógrafo

4 comentários:

  1. Não sei se a urgência é minha, mas o que precisas. além da grana para fazeres um livro do Pornografo. Por que se for só ela, posso ajudar...

    ResponderExcluir
  2. Mais um belíssimo texto, sensível e forte assim como sua literatura.
    O pornógrafo sempre nos dá a oportunidade de poder vivenciar situações inesperadas e muitas vezes desejadas por nós.
    Muito bom!

    ResponderExcluir
  3. Lindo texto, Marcelinho! Repleto de imagens belas e delicadas (pude vê-las enquanto lia).

    ResponderExcluir